domingo, 23 de março de 2014

As sopas da verdade: cozidas, recozidas, enlatadas

"Aqueles que parecem mais preocupados com o que há de mais profundo, esses poderão decerto dizer que a forma é algo de exterior e alheio à natureza da coisa, e esta é tudo o que importa; poderão dizer que a missão do escritor, e sobretudo do filósofo, é descobrir verdades, afirmar verdades, divulgar verdades e conceitos válidos. Mas, se depois de os ouvir, formos verificar como na realidade cumprem essa missão, o que encontraremos será o mesmo velho palavreado, cozido e recozido. Terá esta ocupação o mérito de formar e despertar sentimentos, mas antes deverá considerar-se como uma agitação supérflua. 'Têm eles Moisés e os profetas; ouçam-nos' (Lc 16,29). O que sobretudo nos espanta é o tom e a pretensão que assim se manifestam, como se o que sempre tivesse faltado no mundo fossem esses zelosos propagadores de verdades, como se a velha sopa recozida trouxesse novas e inauditas verdades, como se fosse sempre 'precisamente agora' a ocasião de as ouvir. Por outro lado, verifica-se que um lote de tais verdades propostas aqui é submergido e abafado por outras verdades da mesma espécia divulgadas ali. Como é que se pode distinguir dessas considerações informes e infundadas o que nesse turbilhão de verdades não é velho nem novo, mas permanente?"


Um heraclitiano rejeitaria a possibilidade desta distinção: há sempre velho e sempre novo, nada permanece senão a mudança, e sem se comprometer com a existência ontológica ou fenomenológica do mundo, cremos: tudo flui. E se reclamarem a veracidade ou a importância de uma indagação mais profunda a esse respeito, cito Hume: "Feliz de nós se temos a consciência de nossa temeridade quando tentamos aprofundar nesses sublimes mistérios e, abandonando uma cena tão repleta de dificuldades e obscuridades, retornamos, com decorosa modéstia, à nossa província própria e verdadeira, que é o estudo da vida ordinária (ou o simples viver), onde não nos faltarão problemas com que entreter-se, sem termos de mergulhar num oceano ilimitado de dúvidas, incertezas e contradições..."

quinta-feira, 6 de março de 2014

A maldição do analiticismo

Quando vem a palavra a um divagante livre de jogos de linguagem ele simplesmente a solta. E o analítico puro, em verdade, não o faz deste modo. Este carece duma clareza refinada que vai além do que o simples português pode oferecer. Ele dá nomes, procura regras, impõe condições e critérios de sentido. O analítico está, todos sabemos, tão ligado àqueles seus encostos que sequer considera cabível a existência de outros. Dentre os piores, cito aqueles prolixos e proselitistas que creem ter o mundo na palma das mãos.

E despropositadamente, se puder fazer a analogia da caverna que eles adoram, aqui jaz um deles que, cansado de seus encostos, soltou não de todo as suas amarras e passou a dançar com elas. Não foi à luz, mas foi a janela de sua casa numa noite qualquer e encantou-se o suficiente.

A maldição do analítico não reside em reivindicar a posse da verdade, ou novamente o mundo na palma das próprias mãos, mas apenas em querer ser entendido.

E no instante em que voz escreve, o amaldiçoado irrita-se com a facilidade que lhe aparentam a poesia e a filosofia.
Numa, entendidas as regras, tudo se faz claro e certo e compreensível. Encostável.
Noutra, sem regras, tudo se faz em palavras maravilhosamente.

Difícil, na primeira, são estabelecer as regras. Os filósofos - aqueles que vemos - carecem de público: a própria atividade nasceu numa praça pública. Em sua maioria escrevem para alguém, e mais, dependem de seus alguéns e feedbacks. Amantes das notas, dos números e dos critérios, encostam-se naquilo que se torna, para suas próprias vidas, fundamental - não à toa admiram com tanta soberba suas próprias criações e ilusões.

Na poesia, é dito que não há público alvo. Que o leitor seja responsável pelos sentimentos que advém das palavras e pelo significado que as impõe. A poesia fácil é a sem regras, é a prosa descompromissada. É a que se acha ao redor.

Com o poeta soberbo e amaldiçoado pelo analiticismo se passa que não contenta-se com as regras rígidas d'uma nem com a ausência de público d'outra. Carece-lhe ser entendido e, ao mesmo tempo, o poder para regular suas palavras à maneira maravilhosa da poesia. Fica, portanto, divagando, disforme, e tão estupendamente estufa o peito quando lhe chamam "poeta" que seu ego vai às alturas, cheio de nada. Cheio de lacunas, tão apressado é ao tentar descrever um sentimento momentâneo usando palavras pomposas e encantadoras que conhece, quase numa tentativa de eternizar o provisório e contingente.

O poeta analítico ainda quer as regras, ainda quer os encostos, ainda lhe são belos. O poeta analítico ainda ama o português por si mesmo, ainda contenta-se na filosofia mas ainda crê na sublimidade do simples. Com medo, mais, de não ser compreendido, ele cala, sem tempo, sua mente divagante.

Da prematuridade à eclosão duma sombra

(...)

Hoje a noite marca-se vazia; profundo e ressoante apenas o silêncio que já quase inexiste.
Se a noite carece de amor, por amor ou por dor permanece insólita e fria. Carente de poesia. Carente de mundo e cansada de vida mal vivida. Não vazia, exaurida.

Hoje a noite transfigura-se noutra, menos amarga, dum calor quase acolhedor. Inexpressível e incompreendida, mas agora presente. Hoje a noite toma a forma duma dor que não existe, que não se permite. A forma da dilaceração?

Na noite se apresenta a sombra pouco severa dum dilacerado sem forma. Divagante, pouco errante, amante e vivente. Novamente presente e agora sempre um passo à frente. Sem caos, sem esperança, sem frustração: um soberbo indomado.

Hoje a noite é outra. É das estrelas amarelas e incandescentes, insuficientemente distantes, brilhantes sem o querer de quem as vê. Hoje o vento noturno é genuíno e faz balançar as folhas do pinheiro e o coração de um homem solitário. Mas não sozinho, sem permissão. A solidão exige algo que não se configura já...

Hoje, a noite jaz no aguardo desesperançado do inexistente.