sexta-feira, 27 de março de 2020

Sobre COVID-19

Eu não ia me manifestar sobre a pandemia do COVID-19. Pensei (e, pra ser honesto, ainda penso) que não tenho muito a acrescentar sobre o assunto. A vida de todos está afetada e, por conta disso, já gastamos um tempo considerável dos nossos dias nos informando e ouvindo opiniões a respeito. Ocorre que, em meio a toda a discrepância quanto às medidas que devem ou não ser tomadas para combater a pandemia e minimizar seus impactos, muitos de nós (falo, inclusive, de mim mesmo) acabamos nos fechando numa bolha que não faz mais do que aumentar nossa ansiedade e corroborar as impressões e opiniões que inicialmente já tínhamos sobre o assunto. Como resultado,  o "bom" e velho clima de guerra político nas redes sociais, típico de véspera de eleições, materializa-se nos feeds,  que só mudam da insensatez para a insensibilidade, do radicalismo aos memes e de volta ao início do ciclo.

Não acredito que nós, progressistas, estejamos dando atenção suficiente às necessidades e ânsias de um dos grupos mais afetados pela quarentena: os micro e pequenos empresários, autônomos, donos de restaurantes, bares, cabeleleiros e prestadores de serviços em geral. Aqueles, suponho que uma parcela considerável da população brasileira, que trabalham durante o dia para ter o que comer no jantar. Sua renda, no virar da noite, foi do tudo ao nada, e não deveria surpreender a ninguém que uma ideia como a paralização completa de todas as atividades por, digamos, três meses, soe completamente absurda e impraticável a essas pessoas.

Por outro lado, a irresponsabilidade, para dizer o mínimo, da parte daqueles que desdenham do potencial destrutivo desta doença é um dos fatores que mais me faz perder a fé na humanidade. O último pico desta sensação foi anteontem, quando assisti ao pronunciamento do presidente da república. Seu discurso é uma resposta às ânsias e necessidades dos brasileiros, concilia a preocupação com a economia com orientações simplórias para a pandemia. E é, por esse e outros motivos, surreal. Desconsidera todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde, da medicina, da estatística, da ciência e do bom senso. Compara, mais uma vez, a COVID-19 a uma gripezinha, esnoba de uma das figuras mais iluminadas da TV e internet brasileira, o Dr. Drauzio Varella, e encerra sem dar nenhuma estratégia real de enfrentamento do problema, na contramão de todas as lideranças nacionais (governadores, prefeitos) e internacionais (demais chefes de Estado).

Me desculpem os esperançosos, mas isolamento vertical não basta. Vacinas não estão no limiar, remédios são, no momento, apenas uma aposta e a única certeza é que o distanciamento social é uma estratégia eficiente para evitar a propagação do vírus.

Também era de se esperar, especialmente depois do pronunciamento, que o estado de calamidade pública cairia, aos poucos, no descaso e na negligência, o que se percebe já hoje na maior movimentação das cidades e no posicionamento de alguns governadores solicitando o retorno gradual às atividades (MT, SC). Simplesmente decretá-lo sem nenhuma proposição, como faz o atual governo, é o mesmo que renunciar ao problema com os olhos abertos.

Não sou, como você sabe, especialista em vírus. Também não sou especialista em economia, muito embora aprecie o tema e me arrisque em algumas leituras mais especializadas. Entretanto, como estudante de ética e filosofia política, como cidadão e como ser humano, penso que todos os esforços deveriam, neste momento, ser empregados no combate a esta doença, isto é, em salvar o maior número de vidas e evitar o sofrimento do maior número de pessoas.

É óbvio que o impacto econômico da quarentena será gigantesco, há previsão de recessão para este ano e a perspectiva de crescimento nos próximos, que já era ruim, tornou-se pífia. Os números são, de fato, alarmantes, mas pior do que eles são os sentimentos de incerteza, insegurança e medo do futuro. Ainda assim, é preciso ter em mente que não é justo que, na iminência de uma catástrofe social, estejamos lançados cada um à própria sorte e sem o necessário amparo social. Com as devidas intervenções, economias se reestabelecem e dívidas se pagam, mas mortos não voltam à vida.

Depois de todas as grandes crises econômicas do capitalismo (crise de 1929, crises do pós-guerra, crise de 2008) os Estados interviram na economia para fomentá-la. Não era de se esperar que, diante da maior crise sanitária da nossa era, o mesmo fosse feito? A Câmara dos deputados aprovou ontem o auxílio de 1200 reais às famílias de trabalhadores autônomos, MEIs e desempregados, em proposta que segue para aprovação no Senado. É algo mas é muito pouco, tanto financeiramente quanto simbolicamente. Essa escassez de medidas contribui, a meu ver consideravelmente, na disseminação da insegurança e do medo que a muitos assola. "Muitos vão morrer de fome se a economia ficar parada", dizem. Os sentimentos que emergeriam seriam outros se houvesse uma ampla rede de proteção social aliada à participação ativa dos governos no amparo dos setores mais afetados. A falsa narrativa de que o Estado brasileiro está quebrado, aliada à postura ultraliberal do ministério da economia, não poderia ser mais incoerente com políticas intervencionistas, mesmo em um momento crítico, única circunstância na qual alguns liberais de bom senso acabam dando o braço a torcer admitindo que é hora de fazer algo.

Há, sim, que disseminar a ideia de que os encargos da vida social não devem recair sobre os menos favorecidos e que, por isso, o Estado deve atuar como aliado dos trabalhadores e empregadores na saída da crise iminente. E o que quero, na prática, dizer com isto? Que se instaure, por exemplo, vias de crédito em bancos públicos a juros zero (ou a juros negativos, como já era de praxe no exterior mesmo antes da pandemia) para que comércios e indústrias abram novamente suas portas e retomem suas atividades. Que se use parte do dinheiros das reservas internacionais na aquisição de máscaras, leitos, respiradores e demais equipamentos. Cortar altos salários do setor público? Dúvido que haja impacto financeiro considerável, embora o impacto simbólico talvez o seja. No médio e longo prazo, é preciso reestruturar o sistema tributário de modo de modo a torná-lo mais justo, taxando menos o consumo e proporcionalmente mais a renda de quem mais recebe. Devem-se taxar lucros e dividendos das grandes empresas. Devem ser taxadas as grandes fortunas e as grandes heranças. Há que se pensar em um desenho institucional que, ao mesmo tempo, fomente a concorrência e o livre mercado mas dissemine a renda, a propriedade sobre os meios produtivos e impeça a instauração de monopólios e oligopólios.

O mais importante agora era unir a população no entorno da causa do combate à pandemia, tomando medidas agudas para evitar o caos social e transmitir segurança para a população. Na prática, o que tem sido feito colabora mais para a polarização e disseminação do medo do que para quaisquer outros fins.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

A possibilidade de uma filosofia analítica de cunho existencial

Filosofar não é nada senão se debruçar sobre as questões mais vitais de nossa existência.

São essas as questões "mais importantes, mais apaixonantes, mais urgentes, mais lancinantes". Como diz Paul Valery, "os verdadeiros problemas dos verdadeiros filósofos são aqueles que atormentam e incomodam a vida."

"[...] o filósofo moral ou político não está habilitado a ditar normas e legislar. Ele deve contentar-se em ESCLARECER e SISTEMATIZAR nossas intuições morais - historicamente variáveis e socialmente determinadas -, e, assim, enunciar os princípios que "fundam" essas intuições, mas que, por outro lado, têm como fundamento último essas mesmas intuições: o fato, por exemplo, de que a injustiça nos revolte ou que a solidariedade nos exalte. É, com certeza, sempre possível afastar tais intuições como simples reações emocionais - o que, de resto, elas são -, como fatos puros. Mas também é possível aderir a elas e, explicitando as exigências que exprimem, formular princípios susceptíveis de nos orientar em nossas escolhas morais e em nossos engajamentos políticos.

O filósofo político dessa perspectiva [analítica] não tem a mesma missão de um tribuno ou de um profeta. Ele não tem o direito nem o dever de anunciar aos homens o que lhes incumbe fazer. A sua missão consiste em escrutar incansavelmente nossas intuições espontâneas sobre o que, em nossa sociedade, é bom ou mau, admirável ou intolerável - e esforçar-se, simplesmente, para lhes dar uma formulação que seja clara, coerente, sistemática."

Philippe van Parijs em O que é uma sociedade justa?

domingo, 23 de julho de 2017

Desamparo - vivência

Honestamente, foram poucas as ocasiões nas quais eu me senti "sozinho no universo" e senti verdadeira falta de uma força superior cuja existência e influência em nossas vidas é incompreensível. E não houve, nos últimos anos, sequer um dia que minha razão não tenha sido tentada a admitir a existência de um tal ser.

"Deve haver algo, pois se não houver, que sentido há na vida?"

Muitos de nós, desorientados, incumbem ao universo a ingrata tarefa de ter sentido. Você deve fazer sentido, vida, caso contrário não vales de nada. Outros vão mesmo além e requerem a justiça, mais como uma forma de engolirem a desgraça que vivenciam cotidianamente e não dispõem dos meios para corrigi-la do que propriamente como uma crença razoável e justificada.

Não há fraco que não encontre abrigo em discurso tão acolhedor, e felizes são os pobres e oprimidos, injustiçados e abandonados que desfrutarão dos impérios metafísicos. Mas que felicidade é essa? Uma felicidade fora da vida, uma felicidade que atualmente não se coloca senão em vestes maltrapilhas de esperança. Esperança, futuro, fora da vida.

Tristes de nós que, por vez ou outra, se encontram desamparados, sem essas muletas metafísicas para abrandar nossos sofrimentos. Mas não dependemos de forças extraplanares para confirmar nossa felicidade, não vivemos num teste para provar nossa dignidade de adentrar no paraíso, não guiamos nossa conduta por códigos que não colocamos a nós mesmos. Somos e tentamos ser felizes à nossa maneira, aqui, agora, e esforçamo-nos para que o agora valha a pena como se tivéssemos de retornar a ele eternamente.

Não há maior razoabilidade do que esta: como não há nada no além da vida, é na vida que devemos ficar. E focar. E se permitir sentir a dor de uma perda, o sentimento de injustiça, de desordem e incoerência, viver todos os paradoxos diários que apenas são vistos por nós como tais porque habituamo-nos a enxergar a vida com os olhos daqueles que querem mais do que nela está. Pois se não o fizéssemos, chamaríamos a tais fatos apenas de fatos, e nosso incômodo seria menor, talvez apenas o suficiente para nos impulsionar a transformar a vida e impor nossa vontade no mundo.


quarta-feira, 31 de maio de 2017

Regozijo insignificante

Era uma vez um homem cujo maior anseio era responder à indagação mais (ir)relevante para a existência humana:

Como devemos viver?

Tendo vivido muito, eis que encontrou a resposta.

Infortúnio não lhe sobrar mais vida.

(E morreu).

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Life Without You, por Stevie Ray Vaughan

Stevie Ray também é um profeta e anuncia a chegada de novos tempos, e lembra: viver no futuro traz ansiedade e preocupação; no passado, arrependimento e repulsa. Vivamos sem muitos passados e sem mutos futuros, no presente, como SRV nesta música, porque há muito mais deleite no que há do que no que já foi ou pode vir a ser.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

"O preço de qualquer coisa é a quantidade de vida que você troca por isso."

E nós somos péssimos apostadores, porque investimos todas as nossas fichas (isto é, nossos dias, horas, minutos de vida, de atenção, de esforço físico e mental) em jogos que não sabemos se ganharemos.

E adivinhe só? Ou você aprende a ser feliz com pequenas apostas e pequenas ambições, ou você perderá sempre.


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Sobre a existência e suas bagagens

Será possível uma lógica que sobreviva à desconstrução existencialista (de um Nietzsche ou de um Sartre), justificada, ao menos, pelo seu uso? Será possível a estruturação de um ideal descompromissado da verdade, seja para a orientação da conduta, seja para a explicação do mundo? Será, de fato, intrinsecamente mal o anseio pela verdade ou, ao menos, pela retratação sistemática do mundo? É possível sobreviver ao ceticismo sem as mãos vazias? Que ganhos há, para a existência e para a filosofia, a desconstrução total? Não é ela tão infértil quanto o pensamento mais dogmático? É possível salvar alguma prescrição moral, ou estamos fadados à desorientação, ao amor à realidade incompreensível, à luta constante com a própria existência e às não tão próprias pulsões de vida e de morte, de criação e desconstrução, de movimento e de paralisia? E não haveríamos de negar, então, qualquer hierarquia de valores e de sofrimentos (dos chamados pobres de espírito aos eruditos) - que havemos de fazer com suas lágrimas? Se não podemos sequer escolher uma orientação, como manifestação de nossa própria vontade, que há de original no mundo? Ocupemo-nos menos de acordos alheios, e mesmo menos de nossos próprios... Sejamos apenas, e escolhamos nossas ferramentas para a existência, com as finalidades, os valores e as atitudes que lhes sejam inerentes. Distorçamo-las ao nosso bel prazer e vontade, ou deixemos que distorçam a nós, pois não é a normatização e a idealização da vida uma manifestação de nosso ser? E que mal há se escolhemos ou fomos escolhidos para jogar um jogo específico de regras: por que sempre esvaziar o espaço que está fadado a ser preenchido de algo?

sábado, 20 de junho de 2015

Dez Mandamentos

1. Não tenha certeza de nada.
2. Não pense que vale a pena esconder evidências, pois a evidência deve ser exposta.
3. Nunca desista de um raciocínio que você esteja convencido de estar correto.
4. Quando você encontrar oposição, mesmo que seja de seu cônjuge ou filhos, esforce-se para superá-la por argumentos e não por autoridade, pois a vitória que se baseia em autoridade é irreal e ilusória.
5. Não tenha respeito pela autoridade dos outros, pois para elas sempre haverá autoridades contrárias para serem encontradas.
6. Não use o poder para suprimir opiniões que você considera perniciosas, pois se o fizer as opiniões suprimirão você.
7. Não tenha medo de ser excêntrico em uma opinião, pois para cada opinião hoje aceita ela já foi excêntrica.
8. Encontre mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se você valoriza inteligência como deveria, o primeiro implica em uma concordância mais profunda do que o segundo.
9. Seja escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois é mais inconveniente tentar escondê-la.
10. Não sinta inveja pela felicidade dos que vivem em um paraíso dos tolos, pois somente um tolo achará que isso é felicidade.

Bertrand Russell, Um Decálogo Liberal , A Autobiografia de Bertrand Russel, Vol. 3: 1944-1969, pp. 71-2.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Desamparo - conceito

"E, quando falamos de desamparo, expressão cara a Heidegger, queremos dizer apenas que Deus não existe, e devemos assumir todas as consequências disso. O existencialista se opõe fortemente a um certo tipo de moral laica que pretende suprimir Deus pagando o menor preço possível. Em 1880, quando professores franceses tentaram constituir uma moral laica, eles disseram mais ou menos o seguinte: Deus é uma hipótese inútil e custosa, vamos suprimi-la. Porém, para que exista uma moral, uma sociedade, um mundo que respeite as leis, será necessário que alguns valores sejam levados a sério e considerados como existentes a priori. É necessário que seja obrigatório a priori ser honesto, não mentir, não bater na mulher, criar filhos etc. Vamos, portanto, realizar um pequeno trabalho que permitirá mostrar que esses valores existem mesmo assim, inscritos em um céu inteligível, muito embora, por outro lado, Deus não exista. Dito de outra forma - e esta é, creio eu, a tendência de tudo aquilo que denominamos, na França, radicalismo -, nada mudará Deus não existindo mais; nós encontraremos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo e teremos transformado Deus em uma hipótese ultrapassada que irá morrer tranquilamente e por si mesma. O existencialista, ao contrário, vê como extremamente incômodo o fato de Deus não existir, pois com ele desaparece toda possibilidade de encontrar valores em um céu inteligível; não é mais possível existir bem algum a priori, uma vez que não existe mais uma consciência infinita e perfeita para concebê-lo, não está escrito em lugar algum que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não se deve mentir, pois estamos exatamente em um plano onde há somente homens. Dostoiévski escrevera: 'Se Deus não existisse, tudo seria permitido'. É este o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, consequentemente, o homem encontra-se desamparado, pois não encontra nem dentro nem fora de si uma possibilidade de agarrar-se a algo. Sobretudo, ele não tem mais escusas. Se, com efeito, a existência precede a essência, nunca se poderá recorrer a uma natureza humana dada e definida para explicar alguma coisa; dizendo de outro modo, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontraremos à nossa disposição valores ou ordens que legitimem nosso comportamento. Assim, nem atrás de nós, nem à nossa frente, ou no domínio numinoso dos valores, dispomos de justificativas ou escusas. Nós estamos sós, sem escusas."

Jean-Paul Sartre em O Existencialismo é um Humanismo.