Eu não ia me manifestar sobre a pandemia do COVID-19. Pensei (e, pra ser honesto, ainda penso) que não tenho muito a acrescentar sobre o assunto. A vida de todos está afetada e, por conta disso, já gastamos um tempo considerável dos nossos dias nos informando e ouvindo opiniões a respeito. Ocorre que, em meio a toda a discrepância quanto às medidas que devem ou não ser tomadas para combater a pandemia e minimizar seus impactos, muitos de nós (falo, inclusive, de mim mesmo) acabamos nos fechando numa bolha que não faz mais do que aumentar nossa ansiedade e corroborar as impressões e opiniões que inicialmente já tínhamos sobre o assunto. Como resultado, o "bom" e velho clima de guerra político nas redes sociais, típico de véspera de eleições, materializa-se nos feeds, que só mudam da insensatez para a insensibilidade, do radicalismo aos memes e de volta ao início do ciclo.
Não acredito que nós, progressistas, estejamos dando atenção suficiente às necessidades e ânsias de um dos grupos mais afetados pela quarentena: os micro e pequenos empresários, autônomos, donos de restaurantes, bares, cabeleleiros e prestadores de serviços em geral. Aqueles, suponho que uma parcela considerável da população brasileira, que trabalham durante o dia para ter o que comer no jantar. Sua renda, no virar da noite, foi do tudo ao nada, e não deveria surpreender a ninguém que uma ideia como a paralização completa de todas as atividades por, digamos, três meses, soe completamente absurda e impraticável a essas pessoas.
Por outro lado, a irresponsabilidade, para dizer o mínimo, da parte daqueles que desdenham do potencial destrutivo desta doença é um dos fatores que mais me faz perder a fé na humanidade. O último pico desta sensação foi anteontem, quando assisti ao pronunciamento do presidente da república. Seu discurso é uma resposta às ânsias e necessidades dos brasileiros, concilia a preocupação com a economia com orientações simplórias para a pandemia. E é, por esse e outros motivos, surreal. Desconsidera todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde, da medicina, da estatística, da ciência e do bom senso. Compara, mais uma vez, a COVID-19 a uma gripezinha, esnoba de uma das figuras mais iluminadas da TV e internet brasileira, o Dr. Drauzio Varella, e encerra sem dar nenhuma estratégia real de enfrentamento do problema, na contramão de todas as lideranças nacionais (governadores, prefeitos) e internacionais (demais chefes de Estado).
Me desculpem os esperançosos, mas isolamento vertical não basta. Vacinas não estão no limiar, remédios são, no momento, apenas uma aposta e a única certeza é que o distanciamento social é uma estratégia eficiente para evitar a propagação do vírus.
Também era de se esperar, especialmente depois do pronunciamento, que o estado de calamidade pública cairia, aos poucos, no descaso e na negligência, o que se percebe já hoje na maior movimentação das cidades e no posicionamento de alguns governadores solicitando o retorno gradual às atividades (MT, SC). Simplesmente decretá-lo sem nenhuma proposição, como faz o atual governo, é o mesmo que renunciar ao problema com os olhos abertos.
Não sou, como você sabe, especialista em vírus. Também não sou especialista em economia, muito embora aprecie o tema e me arrisque em algumas leituras mais especializadas. Entretanto, como estudante de ética e filosofia política, como cidadão e como ser humano, penso que todos os esforços deveriam, neste momento, ser empregados no combate a esta doença, isto é, em salvar o maior número de vidas e evitar o sofrimento do maior número de pessoas.
É óbvio que o impacto econômico da quarentena será gigantesco, há previsão de recessão para este ano e a perspectiva de crescimento nos próximos, que já era ruim, tornou-se pífia. Os números são, de fato, alarmantes, mas pior do que eles são os sentimentos de incerteza, insegurança e medo do futuro. Ainda assim, é preciso ter em mente que não é justo que, na iminência de uma catástrofe social, estejamos lançados cada um à própria sorte e sem o necessário amparo social. Com as devidas intervenções, economias se reestabelecem e dívidas se pagam, mas mortos não voltam à vida.
Depois de todas as grandes crises econômicas do capitalismo (crise de 1929, crises do pós-guerra, crise de 2008) os Estados interviram na economia para fomentá-la. Não era de se esperar que, diante da maior crise sanitária da nossa era, o mesmo fosse feito? A Câmara dos deputados aprovou ontem o auxílio de 1200 reais às famílias de trabalhadores autônomos, MEIs e desempregados, em proposta que segue para aprovação no Senado. É algo mas é muito pouco, tanto financeiramente quanto simbolicamente. Essa escassez de medidas contribui, a meu ver consideravelmente, na disseminação da insegurança e do medo que a muitos assola. "Muitos vão morrer de fome se a economia ficar parada", dizem. Os sentimentos que emergeriam seriam outros se houvesse uma ampla rede de proteção social aliada à participação ativa dos governos no amparo dos setores mais afetados. A falsa narrativa de que o Estado brasileiro está quebrado, aliada à postura ultraliberal do ministério da economia, não poderia ser mais incoerente com políticas intervencionistas, mesmo em um momento crítico, única circunstância na qual alguns liberais de bom senso acabam dando o braço a torcer admitindo que é hora de fazer algo.
Há, sim, que disseminar a ideia de que os encargos da vida social não devem recair sobre os menos favorecidos e que, por isso, o Estado deve atuar como aliado dos trabalhadores e empregadores na saída da crise iminente. E o que quero, na prática, dizer com isto? Que se instaure, por exemplo, vias de crédito em bancos públicos a juros zero (ou a juros negativos, como já era de praxe no exterior mesmo antes da pandemia) para que comércios e indústrias abram novamente suas portas e retomem suas atividades. Que se use parte do dinheiros das reservas internacionais na aquisição de máscaras, leitos, respiradores e demais equipamentos. Cortar altos salários do setor público? Dúvido que haja impacto financeiro considerável, embora o impacto simbólico talvez o seja. No médio e longo prazo, é preciso reestruturar o sistema tributário de modo de modo a torná-lo mais justo, taxando menos o consumo e proporcionalmente mais a renda de quem mais recebe. Devem-se taxar lucros e dividendos das grandes empresas. Devem ser taxadas as grandes fortunas e as grandes heranças. Há que se pensar em um desenho institucional que, ao mesmo tempo, fomente a concorrência e o livre mercado mas dissemine a renda, a propriedade sobre os meios produtivos e impeça a instauração de monopólios e oligopólios.
O mais importante agora era unir a população no entorno da causa do combate à pandemia, tomando medidas agudas para evitar o caos social e transmitir segurança para a população. Na prática, o que tem sido feito colabora mais para a polarização e disseminação do medo do que para quaisquer outros fins.
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