quarta-feira, 18 de junho de 2014

"Fatos morais"

Hoje à tarde, antes da vexatória eliminação da Espanha na Copa do Mundo, eu e minha mãe conversávamos sobre as reformas na cozinha de casa: uma nova pia, um novo balcão, um novo fogão e um novo armário. Minha mãe, uma dona de casa cristã de 57 anos, discursava com alegria sobre o fato de estar renovando o ambiente mais movimentado e importante da casa. Comentou, inclusive, que fez alegre também a "mulher do lixo reciclável", que sempre passa por aqui pra recolher papelão e, de brinde, leva roupas usadas. Desta vez, foi premiada com um fogão e um armário de muitos anos de cozinha.

O curioso é que, na sequência, a expressão do rosto de minha mãe mudou de alegre para séria com um toque de tristeza. Comentou sobre a pobreza da senhora e sobre a existência de pessoas que se satisfazem muito com o que, para nós, é lixo. "Eu fico triste com isso. Nós devíamos todos poder ter as nossas coisas com igualdade" ela diz, talvez sem perceber a profundidade de suas palavras. Eu, tocado, me limito a responder um "É nisso que eu acredito, minha mãe. É nisso que eu acredito..."

Dias antes, numa das mesinhas do CFH da UFSC, eu, um italiano e um uruguaio discutíamos sobre neoliberalismo e sobre as crises inerentes ao capitalismo (estávamos no intervalo de uma aula sobre Marx). O torcedor da Celeste, também de inspiração rawlsiana, se limitara a dizer que "hoje, se você é partidário do neoliberalismo, você não é apenas irracional, você é uma pessoa má-intencionada". Uma frase curta mas que faz sentido, uma vez que é a ausência de controle do mercado e das transações financeiras que gera crises como as de 1929 e de 2008. E a consequência de tais crises não poderia ser mais óbvia: desemprego, instabilidade política, pobreza, miséria, fome...

Comentário que me fez lembrar, claramente, do libertarismo de Nozick que, embasado numa doutrina do direito natural, alega a ilegitimidade de políticas públicas de ensino, de saúde, de distribuição de renda. Um argumento que cria um abismo entre os âmbitos ético e jurídico, entre o que é dever de um indivíduo e o que é lícito a um Estado obrigar.

Muitas objeções poderiam ser feitas a tal doutrina.

Uma de índole rawlsiana é aquela que foi apresentada no Bar de Harvard: não há um direito natural à propriedade, você tem o que você tem apenas porque outros indivíduos, em suas ações, consentem a um conjunto específico de regras que lhe confere títulos de proprietário disso e daquilo. Tal consentimento é, muitas vezes, uma restrição dos interesses de mais alto grau destes cidadãos - abrange, inclusive, a limitação de acesso aos bens mais básicos para a sobrevivência e para uma existência minimamente digna.
Você tem o que você tem por razões históricas que não se fundamentam numa verdade transcedental, no direito divino dos reis, no legitimidade jurídica da herança e da transferência de titularidade...

Impossível também não lembrar de Marx e Engels, que rejeitariam o libertarismo por se tratar, em última instância, de um revestimento de interesses pessoais, da intenção da burguesia de manter seu status de classe dominante e os luxos que a acompanham.

Para mim, no momento, basta acreditar na falsidade do neoliberalismo - nem preciso ir além e, apelando para sua metafísica, alegar uma pretensa universalidade destituída de sentido.

E eu, ao final de tudo, mesmo não sendo um realista moral, tive uma intuição: nós, enquanto pessoas e enquanto cidadãos, temos o DEVER ÉTICO de fazer vigorar instituições políticas, leis e ações afirmativas que promovam a igualdade de renda, a saúde e a educação públicas e de qualidade, a geração de empregos, a garantia de moradias na área urbana e distribuição de terras na área rural, em poucas palavras, instituições que garantam não só o mínimo para a sobrevivência, mas o necessário para uma vida com dignidade e lazer, numa sociedade onde o sentimento de respeito mútuo e de cooperação recíproca exista e que possibilita a seus cidadãos realizar seus planos racionais de vida no mais alto grau.

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