INTRODUÇÃO
Ao leitor deste texto, requisito
uma breve introdução para dois comentários. No primeiro, assinalo a minha
dúvida sobre como e onde escrever o que vem abaixo. Pensei, inclusive, em criar
um blog novo onde poderia registrar coisas pessoais: mas qual a necessidade de
um novo sítio? Poderia fazê-lo tranquilamente com documentos de textos salvos
entre as pastas bem organizadas do meu computador (o que também seria perigoso,
afinal qualquer um acha qualquer arquivo no meu PC, dada a minha organização...
e sim, esta tese já foi confirmada). Veio, ao mesmo tempo, a dúvida sobre qual
estilo eu deveria seguir na escrita: se um mais literário e desprendido, tal
como tenho feito nos últimos textos, se acadêmico ou se autobiográfico. Decidi
apenas escrever, embora acredite que o que irá sair seja algo menos rico em
formas linguísticas e mais em conteúdo. Espero, com sinceridade, transparecer o
que for possível disto que para mim é algo profundo e
esclarecedor.
No segundo comentário, registro a
admiração que tenho por pessoas que me tocam profundamente e, dentre estas, por
aquelas que o fazem com poucas palavras. Confesso que recentemente precisei ver uma dessas pessoas frente a frente: ficarei triste por não encontrá-la mais com tanta frequência, mas me alegra saber que adquiri a liberdade (ou intimidade) de lhe fazer confissões
íntimas e de conversar sobre assuntos pessoais e perturbadores. Afinal de
contas, me parece impossível que uma conversa, ou uma música, ou uma poesia, ou
qualquer forma de expressão relacionada ao amor seja tranquila o suficiente:
sempre haverá uma perturbação, uma agitação, ainda que seja apenas numa respiração
mais ofegante ou em uma sutil e breve aceleração dos batimentos cardíacos.
Crendo nisso, me espanta como o que foi dito por tal pessoa me tocou tanto,
embora não me espante a admiração que se seguiu destas palavras. Não convém,
entretanto, divagar sobre estas sem situá-las adequadamente. Dando
início à parte mais autobiográfica do texto, sem prever o estilo e esperando
que o leitor já tenha identificado, ainda que superficialmente, de que se trata, descrevo o que se passou e se passa nesta cabeça torta.
(Havia também um terceiro a
comentário a se fazer, mas lamentavelmente e frustrantemente ele se perdeu nos confins da minha memória.
Tal perda não é assim, simplesmente, uma perda: é também um contraexemplo doído às
minhas palavras e aos meus elogios...)
AUTO-RELATO SEM ESTILO PREVISTO
Embora goste de registros e
confissões, não tenho o intuito de começar um relato pessoal com um
"confesso que". Já o fiz outrora e não me julgo negativamente, mas
também não quero atribuir ao texto ou ao blog o encargo de um confessionário:
que as coisas sejam ditas livre e espontaneamente, sem o chicote do dever de
empurrar para fora as palavras.
Pessoas relacionam-se. Pessoas têm
sentimentos. Não estou imune à isso, embora às vezes a indiferença social me
seja sedutora e embora minha imagem de logicista talvez ainda surja nos confins
das fofocas filosóficas londrinenses. Mas que o leitor perdoe o meu narcisismo
contido e consciente e também o meu egocentrismo, apenas gostaria de dizer que
pego-me às vezes sorrindo, chorando, feliz, triste, alegre, cabisbaixo, amando,
odiando, indiferente, vivendo e ora aprendendo, ora não. E me parece natural
hoje, que acredito ter me dado conta o suficiente de que sinto, e de que sinto
o suficiente, a postura ou ação de aprovar ou reprimir sentimentos.
Não traçarei a etiologia completa
desta postura pois me seria impossível esgotá-la em palavras e a memória já me
falha. Ela surgiu, entretanto, da constatação de que há ao menos um rumo a ser tomado e
de que eu fora curado, nalgum momento, de meu ceticismo avassalador. Entendi
que o perfeccionismo é pessoal e que não há mal algum em ter crenças e valores (talvez
menos mal do que há em ter crenças e valores impensados, mas apenas talvez). Aceitei
que vejo o mundo sob uma perspectiva (a minha) e que não se pode negar que a
vida oferece coisas boas. Decidi continuar a viver sem inércia, e nos túneis
onde seguia o fluxo da minha vida surgiram luzes. E na junção dessas luzes encontrei uma imagem poderosa: pus em prática, então, um antigo conselho
e terminei de moldá-la. E mais: passei acreditar nesta imagem, em sua
efetividade, e talvez tenha mesmo passado a amá-la, embora minha modéstia peça
apenas para dizer que eu admiro tais e tais modos de ser.
E dentre tais e tais modos de
ser, figura o modo daquele que entende e aceita a liberdade das pessoas num
distanciamento confortável, seguro e feliz. Pois hoje, vejo que não aceito bem as
pessoas como são, não aceito suas ações, seus rompimentos de contratos, suas
iras e paixões. Vejo em mim apenas intolerância, conservadorismo, desprezo,
ciúmes, inveja, raiva e tantas outras coisas ruins abrandadas apenas pelo meu
ceticismo passageiro e pela minha vontade de seguir o rumo da luz.
Destaco, dentre tais sentimentos negativos,
o ciúmes, e descrevo na sequência minha crença em sua podridão.
Pois podre é como o ciúmes é
chamado por mim sem originalidade visto que, creio, assim o seria caso "O
Ciúmes segundo G.K." um dia viesse a ser escrito. E na lama deste
sentimento encontrei-me hoje, ontem, por um alguém, por outro, e assim foi.
Surpreendentemente, imerso na lama, mal distinguia se o que me causava nojo era
a lama, ou eu mesmo, ou o fato de eu estar mergulhado nela. Mas dizer "lama"
é leve: há até quem faça terapia com isso. Eu estava mesmo é mergulhado numa
piscina de bosta. Merda, da mais suja e fétida e nojenta possível. Quão horrorosa
é essa sensação eximo-me do trabalho de descrever e poupo também o leitor do
desprazer. Mas daqui, desta minha perspectiva, onde alucinadamente vejo luzes
em fins de túneis se fundindo para formar uma autoimagem poderosa e possível
que eu talvez ame, enxergo também que a sensação de posse subjaz o ciúmes e se
faz presente, com muita frequência, nos relacionamentos humanos.
(A esta altura o leitor pode
perceber que o espírito filosófico está encarnando nas palavras. Perdoe-me, ou permita-me falar por nós sem a pretensão de uma verdade universal.)
Muito possivelmente o tema da
propriedade mereça não apenas um comentário passageiro num post de blog, mas
posts inteiros, artigos, livros e quem sabe uma tese de doutorado. Precisando,
indubitavelmente, aparar as pontas desta minha crença que chamo de opinião
pré-formulada, apresento-a tão lúcida e frágil e sincera quanto consigo: se
entendemos a propriedade como aquilo que não nos pode ser tirado, e aquilo que
atribui aos outros o dever de respeitar tal direito, então nós, seres humanos, não
possuímos nada ou, para ser ainda mais sincero, possuímos apenas aquilo que se esconde sob a
tênue linha que separa o que existe do nada. Se há algum procedimento ou
divindade ou teoria que prove, absolutamente, que eu posso chamar qualquer
coisa de "minha", ou mais, de "indubitavelmente e exclusivamente
minha", então que me seja apresentada ou continuarei minhas dúvidas sobre
o possuir.
Entendo, entretanto, que há
coisas valiosíssimas escondidas sob essa tênue linha que citei. São elas nossas
memórias e nossas vivências: aquilo que somos e que queremos ser, aquilo que
sentimos intimamente, que pensamos e que não nos pode ser tirado facilmente.
Pois a experiência mostra que os
homens arrancam-se os olhos mas não as lembranças do que foi visto. Roubam-se
as mulheres mas permanecem os amores (e as agitações, e as respirações
ofegantes e as taquicardias). Quem tira de nós aquilo que tão dificilmente
traduzimos ao mundo? Em palavras, em gestos, em vida: quem rouba de nós o
íntimo que beira o impossível de ser compartilhado, dado o abismo existente
entre eu e a palavra, entre eu e tu, entre tu e os outros e entre todos nós?
E eis aqui uma confissão daquelas
que jamais serão vistas em dissertações de doutorado, livros de filosofia e
verborragias gananciosas: se creio nesta concepção de propriedade e se assumo
que a única coisa que podemos taxar verdadeiramente de nossas são nossas
memórias e vivências, dada a sua ligação com nosso íntimo, sua dificuldade em
se mostrar aos outros e, principalmente, de nos serem arrancadas como o são diariamente
os nossos "pertences", esta crença se deve ao fato de que eu estou, com
minhas memórias, numa relação quase que de servidão e submissão. Tenho enorme dificuldade em ordenar meus pensamentos, tenho enorme dificuldade em aceitar que devo ordenar os meus pensamentos e peno com o que se passa na minha cabeça.
Confesso, ao leitor, que graças à isso choro e sofro e me sinto dilacerado. Às
vezes perco a cabeça; às vezes, para fugir, planto a indiferença e a ignorância, me distraio
com a bebida, com Age of Empires, com música ou qualquer tarefa manual. Me é
difícil lidar com minhas vivências e memória, e talvez isso se dê ao fato de
que esta funciona anormalmente bem. Ela, dentre outras coisas, é causa dos meus surtos e sustos.
Mas nem por isso minhas memórias
deixam de ser minhas, e o que me leva a crer que a elas posso chamar de minhas
é o fato de não ter encontrado algo que possa ser retirado de mim com a mesma
dificuldade. E, se o leitor se cansa já a esta altura do texto, peço desculpas
e compreensão: disse no início que tentaria descrever um conteúdo pessoal que
para mim é rico, profundo e esclarecedor. Se há dificuldades na leitura é
porque as barreiras entre o meu sentir e minhas palavras não foram
suficientemente derrubadas, mas talvez isto corrobore a minha tese: de
quão meu isto é, e de quão difícil é para mim mesmo retirar de mim e exibir o que
considero meu.
Acreditando nisso, consegui
retirar um pouco meus olhos e nariz encharcados da bosta fétida do ciúmes e
enxergar algumas coisas. Que autoridade tenho eu para chamar qualquer pessoa de
minha? Logo eu, que acredito na liberdade da vontade, que odeio contratos mal
cumpridos (isto é, cumpridos apenas por inércia ou pelo simples dever de serem
cumpridos, sem vontade e sem a motivação legítima que conduziu à sua
instauração)? Que poder ou autoridade teria eu para reivindicar a presença de
qualquer pessoa a meu lado, e pior, exclusivamente? Nenhuma! Sequer tenho esse
desejo e poderia facilmente considerá-lo maligno e até diabólico. Por que, então, deveria
eu sofrer em todo aquele fedor e em toda aquela podridão?
O ciúmes é, de fato, um
sentimento podre. O ciúmes: este sentimento que, a meu ver, envolve a falsa
sensação de que possuímos uma pessoa, de que ela tem para conosco um dever a
ser cumprido, a saber, o dever de ser nossa, exclusivamente nossa, ainda que
infeliz, carente de amor, seca de vida e sedenta de paixão.
Dei, então, alguns passos à
frente em direção à beira do lago podre, ainda atônito mas já enxergando melhor
graças à luz de uma memória que se fez presente: recebi, na tarde desta
terça-feira, a maravilhosa notícia de que uma pessoa muito importante da minha
vida dera um passo decisivo para a realização de seus sonhos pessoais de mais
alto nível. E que felicidade genuína eu senti por ela: estaria eu, naquele
momento feliz, naquela distância que considerei confortável e segura? Talvez
seja apenas uma distância justa, isto é, que faça justiça a tudo o que vivemos
e à toda influência que nos exercemos. De qualquer modo, me foi impossível
esconder a empolgação, e mesmo sabendo estar ela chamando a outro de
"amor", não sofri e não chorei, muito embora minha felicidade por sua conquista quase fosse abrandada não houvesse eu me esforçado em continuar focado
na luz, e com os olhos limpos. Agora sorrio por ela, aplaudo e felicito, sem
formalidades, sua conquista e sua felicidade.
Por ela já chorei, por ela já escrevi, mas a admirada pessoa que citei no início também estava certa ao dizer
que as lembranças vivas e dolorosas do amor morto dariam lugar a lembranças
mais felizes, como se caminhassem de um lugar ruim para um lugar bom, cujas
portas podem ser abertas sem causar dor a quem abre...
E se posso, genuinamente, ser
feliz por ela, porque não posso ser feliz pela felicidade alheia, digo, de
qualquer pessoa? Me parece inteligente, portanto, deixar que as pessoas sejam
livres como pássaros e deixar que se acomodem umas às outras conforme quiserem
e escolherem. Essa deixa, que na verdade é uma aceitação: que amem, que se
apaixonem, que vivam intensamente e que façam o que sua bússola do desejo
indicar. Aos meus amados e amadas, que sejam felizes e apenas peço que se
cuidem. Sequer reivindico presença, sequer reivindico cumprimento de contratos.
Sinceridade, apenas, e espontaneidade, mas isso só espero ingenuamente.
Que estar com alguém seja consequência de uma escolha livre: que tal escolha será diária não me restam dúvidas, tampouco que haverão obstáculos dificílimos a serem vencidos, e talvez também haja, como diz Bethânia, um jeito certo de amar, e talvez esse jeito seja apenas beijar a quem se ama, abraçar a quem se gosta e só se doar por paixão...
Agora, mais limpo e com o coração mais calmo, assumo que estou procurando (e
talvez aprendendo) como amar, à minha maneira. Assumo também o caráter didático
deste auto-relato de estilo imprevisto, e percebo que não estava tão carente de
vida e de palavras como pensava estar algumas horas atrás. Então, despeço-me dos
leitores sem enfileirar ou denumerar as normas que figuram implícitas nas
minhas palavras e nas minhas crenças. Dificulto as coisas para vocês, mas
dificulto-as mais para mim: caminhar sobre as pedras e em solos irregulares
caleja os pés e fortalece as pernas. Se um dia serei a encarnação daquela
imagem mais perfeita que vejo se formar diante de meus olhos não posso agora
responder, mas ao que tudo indica, o mundo nunca oferece demais para nossa
cabeça, e talvez tudo o que precisemos seja tomar consciência de nossos
sentimentos para que posteriormente o conforto, a serenidade de espírito e a força
para cuidar de nós mesmos possam se instalar. Afinal, a manutenção de um relacionamento depende muito menos do esforço que despendemos em manter, por exemplo, diálogos forçados e sem sentido, e muito mais do esforço para sermos pessoas diferentes ou melhores, para que tenhamos algo mais, algo que valha a pena ser compartilhado. Ou do esforço para sermos, simplesmente.